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27/02/2023 às 20:19h

Imagens imortalizadas

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Raramente sinto saudades. Tenho muitas lembranças boas de tempos vividos e de convivências; mas saudades, raramente.

Saudade dói, é situação irreversível, algo que não tem jeito mais, uma perda definitiva. Não me eduquei a ter ou a sentir dor de saudade; mas somente a ter lembranças boas, que aparecem sem sinal de alerta e que vêem e vão espontaneamente. Minhas lembranças de tempos vividos e de convivências são alegres, gostosas de serem relembradas. Elas aparecem em minha mente sempre cercadas de luzes âmbar e são de momentos dos mais simples, passando pelos de introspecção e indo até os mais coletivos e festivos.

Das poucas saudades que sinto, a que mais me ronda é a do tempo de convivência com minha avó Dilina (Adelina). As imagens que vez ou outra trazem a saudade são de um dia claro de cor âmbar. Vejo o rosto sereno de minha avó, seu leve sorriso entre rugas, sua vasta cabeleira organizada em um coque gigante afixado entre o alto da cabeça e o início da nuca, seu andar calmo, sua lida na cozinha, no galinheiro, em meio a flores que ela plantava em latas de óleo Mazzolla.

Nas vezes em que a saudade bate com maior intensidade, me vejo atravessando o vaivém rodeado de arame farpado que dava acesso à casa branca, lugar onde fui criado por minha avó. Estou entrando no terreiro de terra batida, tendo a casa-grande com suas imensas janelas escancaradas à minha frente. Numa das janelas, avó Dilina me vê caminhando em sua direção. Subo as escadas altas que dão acesso à porta da sala. Piso no assoalho cheio de pequenos buracos, fazendo as tábuas rangerem levemente. São imagens tão claras que sinto cheiros e vento... meus pés descalços seguem tocando os torrõezinhos de poeira do terreiro.

Depois, essas imagens saudosas imortalizadas pela memória que guardo de minha avó renascem na cozinha da casa-grande. A porta está aberta, mostrando a casa da tia Baninha a poucos metros, banhada de sol âmbar. Eu me dirijo ao fogão e remexo os gravetos em brasa. Minha avó aparece pacientemente ao meu lado, tira o bule de café que está em banho-maria na chaleira, pega uma xícara esmaltada e a enche de café ralinho. Ouço o tom de sua voz pedindo-me para sentar no banco de madeira da cozinha. Ela caminha em direção à despensa e desaparece. Eu fico ali soprando o vapor adocicado do café ralinho, tentando esfriá-lo. Sinto o vapor impregnando meu rosto, deixando-o quente e umedecido. Quando levanto a cabeça, minha avó já está de pé na minha frente com uma fatia generosa de bolo de fubá assado em panela de ferro nas brasas do fogão a lenha. Minha mãozinha mal consegue segurar a fatia generosa. Então me delicio no sabor absurdamente delicioso do bolo de fubá, tentando equilibrar o desequilíbrio provocado pela xícara esmaltada cheia de café ralinho numa mão e pela fatia generosa de bolo na outra. Ela se senta ao meu lado e fica me observando comer cada migalha. Vez ou outra ela pega um pedacinho da fatia com a pontinha dos dedos e leva até a boca. Depois contorna meu corpinho com um dos braços, aconchegando-me ao lado dela. Vejo as flores de seu vestido comprido até abaixo dos joelhos serem amassadas com aquele afetuoso abraço... Há uma interrupção brusca... A luz âmbar das imagens imortalizadas na memória escurece como se alguém tivesse apagado as luzes propositalmente... Fica então o vazio de uma ausência preenchido pela saudade.

Fisicamente, não a tenho mais por perto. Ainda trago comigo, dessas imagens saudosas, o cheiro e o calor maternal da minha avó.

Ela me amava com amor de Maria do Carmo (minha mãe), com amor de Maria (Nossa Senhora) – incondicionalmente. Amava-me, materializando com gestos seu amor, o mais puro amor.

Talvez essa saudade que sinto e que vez ou outra me assalta o momento seja um presságio de que um dia serei envolvido novamente no aconchego dos braços dela... de que um dia as imagens que guardo comigo novamente se materializarão... e então poderei − agora homem feito, amadurecido pelos ensinamentos repassados por ela e não mais um menino olhando para o alto tentando ver o próprio futuro − reviver esse amor infinito.

Por José Roberto Pereira

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